SECA, CORDEL E FOLCLORE
Observar, relacionar e generalizar fatos e coincidências com a meteorologia talvez seja uma das atividades humanas mais antigas, haja vista a relação de dependência entre o homem o meio-ambiente existente desde os primórdios da humanidade, na constante luta pela sobrevivência da espécie.
O movimento dos astros, do vento e das nuvens, o canto dos pássaros, o comportamento de insetos e outros animais, a evolução do ciclo de determinados vegetais, a coincidência de números e datas são fatos que, aparentemente, sem qualquer relação científica, explicam, justificam e fundamentam a previsibilidade do tempo.
Esse saber popular, acumulado ao longo dos séculos, coexiste com a meteorologia científica e sofisticado, monitorada por computadores e satélites artificiais, não apenas no sertão nordestino, mas em outras áreas do Brasil agrícola.
Como influência nas produções literárias, é a temática da seca um dos fenômenos naturais que mais aparece nos textos de autores, de ontem e de hoje. Escritores brasileiros imortalizaram, em suas obras, a luta pela sobrevivência, as tristezas das retiradas, o drama humano, pessoal e social, advindo da seca. Raquel de Queiroz em O Quinze e Graciliano Ramos em Vidas Secas são exemplos da literatura erudita, tão clássica quanto atual.
Já a música popular brasileira - MPB - também tem, na seca, rico filão temático. Como não citar Asa Branca, imortalizada na voz de Luiz - Lua - Gonzaga?! E Triste Partida, de Patativa do Assaré, também gravada pelo rei do baião?!
E como o tema seca é vivenciado em diferentes manifestações folclóricas por este Brasil afora?
É nas superstições e crendices, reforçadas ou não por uma religiosidade popular, misto de fé e ingenuidade, que a população simples de áreas brasileiras, geográfica e historicamente secas, busca na proteção divina a minimização das misérias humanas e da pobreza crônica, agravadas pelas estiagens e secas periódicas. A idéia de castigo divino, corretivo de desvios de conduta, violências e descrença em Deus também justifica as secas e suas conseqüências socioeconômicas e pessoais.
João Naves de Melo (1) descreve um ritual de preces para fazer chover vivenciado na década de 1970, no município de São Francisco. Naquela ocasião, segundo o pesquisador, procissões eram realizadas em novenas a partir do meio-dia, quando o sol é mais causticante no sertão nordestino. Mulheres, homens e crianças peregrinavam pelas ruas do município, cantando, rezando e carregando oferendas sobre a cabeça (garrafas com água, pedras e ramos verdes) em sinal de penitência e pedidos de proteção e merecimento das benevolências de Deus-Pai.
Prática semelhante é vivenciada na região Sul, conforme reportagens em diversos jornais do país, ao longo das últimas três décadas.
Zezito Guedes (2) registrou alguns ditos populares ressaltando a relação entre seca e religiosidade popular. Eis alguns:
- A seca é um castigo para o povo que não tem mais fé.
- A seca só aparece quando o povo está pecando demais.
- A falta de merecimento traz a seca para o sertão.
- A seca acontece de vez em quando para desconto dos pecados.
- A seca vem para que o povo se lembre de Deus.
- Pela desobediência do povo é que vem a seca para a terra.
- O povo profana a Deus e a seca vem com castigo.
Muitos são os sinais tidos como certeza, capazes de profetizar o bom ou mau inverno. Entre os maus presságios preconizados pelo comportamento do animais sobressaem: formigas da roça procurando lugares baixos nos leitos dos rios, no final do ano, desaparecimento de abelhas com ferrão e asa branca arribando para outras áreas.
Em relação às datas, destacam-se: o primeiro dia do ano e o segundo de fevereiro. Se chuvosos, mau inverno ou seca. Se forem claros e limpos, o inverno será bom, de fartas colheitas. Domingo de carnaval e Semana Santa com chuvas? O inverno é certo!
Datas religiosas católicas também são referências para se prever um bom ou mau inverno: 19 de março (dia de São José) sendo o dia claro e de céu limpo, seca na certa. Oito de dezembro (dia de Nossa Senhora da Conceição) havendo relâmpagos na véspera, bom inverno. 13 de dezembro (dia de Santa Luzia) e as pedras de sal: colocadas ao sereno, de 12 para 13, representam, cada uma, um mês do primeiro semestre. Antes do amanhecer, as pedras que estiverem úmidas indicam chuvas para os meses correspondentes. Uma outra profecia de Santa Luzia consiste em observar os dias 14 a 19 de dezembro. Para cada dia corresponde um mês do primeiro semestre. Assim, chovendo por exemplo, no dia 17, o mês de abril será bom de inverno. 24 de dezembro (Natal), havendo relâmpagos para cima ou chuva, o inverno está garantido.
O artesanato de temática da seca é muito expressivo, particularmente o de Caruaru (PE), da chamada escola do Mestre Vitalino. Pintadas ou, simplesmente, no barro cozido, são representadas cenas de retiradas, quando a população, sofrida e castigada pela seca, carrega seus poucos pertences materiais em trouxas sobre a cabeça ou penduradas no cajado apoiado nos ombros. Partem em busca de melhores dias ou, na pior das hipóteses, fogem da morte imediata e certa. Muitas vezes, famílias inteiras se fazem acompanhar pelos animais de estimação e ganham estrada a pé, em caminhões paus-de-arara ou ônibus, tornando-se fonte de inspiração para o artesão. Imagens reais que o artista popular cria e reproduz usando matéria-prima extraída da própria natureza - barro, madeira, pedra, etc.
A xilogravura, em papel ou tecido, é outra expressão do artesanato para retratar a seca e suas conseqüências pessoais e sociais. J. Borges, poeta popular e artesão, por exemplo, é um dos artistas nordestinos que emprega a técnica da xilogravura (impressão cuja matriz é talhada na madeira) para exteriorizar sua visão de mundo, seus sentimentos, sua expressão artística, seu protesto.
Mas, é na literatura de cordel, no folheto, que a temática da seca atinge o ápice da expressão comunicativa, enquanto crônica, narrativa, protesto político-social, jornalismo.
É preciso não esquecer que, até meados deste século, tanto o folheto quanto o poeta popular, que improvisava e cantava nas feiras livres nordestinas, os casos e "causos", exerciam a função comunicativa que hoje cabe à mídia, em particular, ao rádio e à televisão.
É importante lembrar que a população, cuja sobrevivência depende intimamente da relação homem/natureza, e que convive no seu cotidiano com as estiagens prolongadas e com as secas periódicas, continua sendo aquela dos menos favorecidos economicamente, quase sempre com um mínimo grau de escolaridade ou analfabetos, que usa tecnologia e equipamentos rústicos de conhecimento empírico do saber tradicional e informalmente transmitido através das gerações. Permanecendo à margem do processo criativo do conhecimento científico e do saber socialmente aceito, parcela considerável da população brasileira encontra no saber popular apoio para a sua sabedoria, refletindo-se no pensar, sentir e agir coletivo.
"A Triste partida", de Patativa do Assaré (3), cantada por Luiz Gonzaga, talvez seja a síntese de tudo que pode acontecer e se relacionar à seca, não passando despercebido da sensibilidade do poeta popular, conforme se observa nos versos abaixo:
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